ANÁLISE DE POEMAS

18/05/2015 00:06

ANÁLISE DE POEMAS

 

 

A intenção de se trabalhar com a poesia, leva-nos ao pensamento de  Manuel Bandeira (1984, p.19), no livro Itinerário de Pasárgada: “a poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”.

Logo, a poesia "Convite", de José Paulo Paes, é um convite para a leitura que se faz não somente às crianças, mas também ao leitor em geral. Ele utiliza-se de imagens poéticas que integram o cotidiano infantil - assim como integram, em alguns casos, parte do cotidiano adulto.


Convite

Poesia

é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.


As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

 

PAES, José Paulo. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 2011.

 

Gentileza

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras

E as palavras de gentileza

Por isso eu pergunto
A você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola
A vida é o circo
"Amor: palavra que liberta"
Já dizia o profeta.

MONTE, Marisa & LINDSAY Arto. Marisa Monte - Cd"Memórias, Crônicas e Declarações de Amor".Intérprete: Marisa Monte.   Estúdios de Gravação Ilha dos Sapos(Salvador-BA). Mega, c2000. 1 CD. Faixa 10.




A música "Gentileza" pode ser apresentada aos alunos em áudio, em que se ouve a voz de Marisa Monte cantando-a, e por meio de vídeo, com imagens do ‘profeta’ Gentileza. O intuito é sensibilizar os alunos para o trabalho  a ser realizado e também indagar e discutir sobre o conceito de poesia. 

 

O que a teoria fala acerca dos aspectos formais de um poema  e a humanização?

 

Antonio Candido (2004) afirma sobre o poder que a ordenação formal e rítmica do texto literário provoca no leitor.

Quando digo que um texto me impressiona, quero dizer que ele impressiona porque a sua possibilidade de impressionar foi determinada pela ordenação recebida de quem o produziu. Em palavras usuais: o conteúdo só atua por causada forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere.              (CANDIDO, 2004, p.178).

 

Em “Gentileza”, na forma do texto, há uma sonoridade inicialmente provocada pelo paralelismo dos dois primeiros versos, formado por verbo caracterizador de sujeito indeterminado, mais um complemento verbal indicado pelo pronome indefinido “tudo”, “tudo de cinza”, que constituem o refrão do texto e provocam uma indagação no leitor, que não tem clara a informação sobre quem apagou e o que foi apagado. Aliado a isso, o ritmo vai se definindo ainda pelas rimas mais complexas, posto que coincidentes apenas nas vogais: tinta/cinza; tudo/muro; pergunto/mundo; liberta/profeta e também por aliterações como nas recorrências dos sons “p” e “t”, “ss”: “tristeza e tinta fresca”; “passamos apressados” [grifamos]. Toda essa elaboração estética é o que provavelmente  “impressiona” os alunos na recepção desse texto e é também ela, conforme quer Candido, o que possibilita a humanização. À parte isso, fica, no nível do conteúdo, apenas a história de alguém que presencia uma cena prosaica de cidade que, em nome de sua assepsia, tem apagados do muro os escritos filosóficos do profeta Gentileza.

E que foi o profeta Gentileza? Cabe ao leitor pesquisar, já que há muito o que ser descoberto.

 

Em relação ao poema “Convite”,  José Paulo Paes concebe e encara a poesia como um brinquedo. Esse brinquedo distrai e dá prazer, portanto, a poesia é como algo inusitado e é preciso sempre olhá-la como algo novo diante dos olhos. Essa percepção  se alinha à própria concepção de Paes de que a “poesia é revelação” (PAES,1996, p.34), tal como o poeta diz ter aprendido com Drummond e Bandeira.

 

 

Análise:

Poema Tirado de uma Notícia de Jornal
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão

                                                                                                           [sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

 

BANDEIRA, Manuel. Obras completas. V. I e II. Rio de Janeiro, 1958.

 

Nesse texto, o poeta se apropria de uma linguagem de jornal e sustenta com os três versos mais ritmados o tom poético e a preparação para cena dramática ao final: “Bebeu/cantou/dançou”. O poema nos destina a uma incerteza social e até mesmo existencial, referente do ser poético João Gostoso, isto é, no poema, ele não traz um sobrenome oficial, - no jornal, provavelmente teria - mas popular, um apelido. Há um inominação do sujeito em detrimento do nome do bar que se denomina “Vinte de Novembro”, sendo enfática a maior importância do espaço físico em relação à individualidade humana. Isso acontece também em “Morte do leiteiro”, que será analisado mais adiante, pois o nome da rua “Namur” aparece e não o do leiteiro.

 

Análise:

MORTE DO LEITEIRO (Carlos Drummonde de Andrade)

 

O poema, transcrito a seguir, insere-se num contexto literário que abarca os anos 30 e 40, época em que o poeta sente a necessidade de posicionar-se diante de acontecimentos como a expansão do fascismo, a guerra de Espanha, a Segunda Guerra Mundial.

Candido (2004), em análise da poesia de Carlos Drummond de Andrade, afirma que

a poesia social de Drummond deve ainda a sua eficácia a uma espécie de alargamento do gosto pelo quotidiano, que foi sempre um dos fulcros de sua obra e inclusive explica a sua qualidade de excelente cronista em prosa. (CANDIDO, 1970, p.108)

Merquior (1975), por outro lado, analisando o poema “Morte do Leiteiro”, aponta aspectos da forma que contribuem para aliar ao projeto estético o projeto ético do poeta:

a expressão econômica, o emprego da linguagem coloquial, o adjetivo e o símbolo organicamente ligados ao sujeito ( a noite geral; o valor simbólico da aurora atribuído à mistura do leite com o sangue), a marcha hábil da narração em redondilha maior, o verso popular por excelência em português, asseguram o mais alto nível poético a essa banal tragédia  urbana. (MERQUIOR, 1975, p.109)

 

Tanto Candido quanto Merquior consideram que a poesia drummondiana é de alto nível. Isso porque o poeta consegue aliar conteúdo (falar de cenas do cotidiano, por exemplo) e expressão (linguagem coloquial, adjetivo e símbolo organicamente ligados ao sujeito etc) de forma surpreendente.  O texto narra o cotidiano da cidade grande que engole o ser humano e suas várias facetas na passagem dos dias que parecem sem solução. A “aurora”, porém, garante o surgimento de um novo dia. Assim, em “Morte do leiteiro”, o poeta não está só, visto que o problema atinge a todos. Segue o texto:


 

Morte do Leiteiro

                 (A Cyro Novaes)

 

Há pouco leite no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há muita sede no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há no país uma legenda,

que ladrão se mata com tiro.

 

Então o moço que é leiteiro

de madrugada com sua lata

sai correndo e distribuindo

leite bom para gente ruim.

Sua lata, suas garrafas

e seus sapatos de borracha

vão dizendo aos homens no sono

que alguém acordou cedinho

e veio do último subúrbio

trazer o leite mais frio

e mais alvo da melhor vaca

para todos criarem força

na luta brava da cidade.

 

Na mão a garrafa branca

não tem tempo de dizer

as coisas que lhe atribuo

nem o moço leiteiro ignaro,

morador na Rua Namur,

empregado no entreposto,

com 21 anos de idade,

sabe lá o que seja impulso

de humana compreensão.

E já que tem pressa, o corpo

vai deixando à beira das casas

uma apenas mercadoria.

 

E como a porta dos fundos

também escondesse gente

que aspira ao pouco de leite

disponível em nosso tempo,

avancemos por esse beco,

peguemos o corredor,

depositemos o litro...

Sem fazer barulho, é claro

que barulho nada resolve.

 

 

 

Meu leiteiro tão sutil

de passo maneiro e leve,

antes desliza que marcha.

É certo que algum rumor

sempre se faz: passo errado,

vaso de flor no caminho,

cão latindo por princípio,

ou um gato quizilento.

E há sempre um senhor que acorda,

resmunga e torna a dormir.

 

Mas este acordou em pânico

(ladrões infestam o bairro),

não quis saber de mais nada.

O revólver da gaveta

saltou para sua mão.

Ladrão? se pega com tiro.

Os tiros na madrugada

liquidaram meu leiteiro.

Se era noivo, se era virgem,

se era alegre, se era bom,

não sei,

é tarde para saber.

 

Mas o homem perdeu o sono

de todo, e foge pra rua.

Meu Deus, matei um inocente.

Bala que mata gatuno

também serve pra furtar

a vida de nosso irmão.

Quem quiser que chame médico,

polícia não bota a mão

neste filho de meu pai.

Está salva a propriedade.

A noite geral prossegue,

a manhã custa a chegar,

mas o leiteiro

estatelado, ao relento,

perdeu a pressa que tinha.

 

Da garrafa estilhaçada,

no ladrilho já sereno

escorre uma coisa espessa

que é leite, sangue... não sei.

Por entre objetos confusos,

mal redimidos da noite,

duas cores se procuram,

suavemente se tocam,

amorosamente se enlaçam

formando um terceiro tom

a que chamamos aurora.

 

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 56 ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 178-18.

 

Quanto aos aspectos formais: o poema é composto por oito estrofes que, embora com versos brancos, a sonoridade é extremamente bem trabalhada, apresentando-se em alto grau por meio das repetições (1ª e 6ª estrofes, por exemplo), de assonâncias e de aliterações recorrentes em todo o poema. As estrofes apresentam uma métrica em redondilha maior (7 versos), o que dá um ritmo mais rápido na narração e na caminhada do leiteiro rumo ao seu destino. Ressalta-se que a redondilha maior tem o ritmo característico dos poemas (e canções) populares e isso leva o poema para mais perto da cotidianidade da estória narrada.

Quanto à linguagem,  ela é direta, objetiva, e entrelaçada com uma linguagem figurada. Nas imagens, há o retrato da cidade (sociedade) habitada por homens.  Homens leiteiros, que trabalham, suam, sofrem, são ignaros e ignorados pela sociedade.   

 Os versos são iniciados com orações sem sujeito “Há pouco leite no país”. Os verbos no tempo presente e os gerúndios criam o efeito de algo que ocorre no mesmo instante em que se fala. Foi constatado pelos alunos que o poema tem tom narrativo e o personagem leiteiro não é nomeado por meio de um substantivo próprio, mas pela palavra que lhe indica a função na divisão do trabalho. O movimento do leiteiro se dá pela percepção do leitor nos verbos imperativos, nos versos 36 a 40: “avancemos por esse beco/ peguemos o corredor/ depositemos o litro” porque o moço leiteiro não tem voz. Objetos inanimados como a “lata”, a “garrafa” e os “sapatos de borracha” anunciam a chegada dele que tem “passo maneiro e leve” (verso 42). Algumas adjetivações também evidenciam subjetividades que foram interpretadas, como: “último” subúrbio, leite mais “frio”, “melhor” vaca, luta “brava”, leite “bom”, gente “ruim”. Também as antíteses dão significado ao conteúdo poético, como em leite “bom”, gente “ruim”.

A análise dos elementos formais e de conteúdo contribui para se perceber que o sujeito lírico (narrador) parece andar ao lado do leiteiro e começa retratando a imagem de uma cidade que ainda “dorme”. Os moradores ainda estão dormindo, durante a madrugada, não se importam com aquele que traz o alimento diário às suas portas, no caso, o leiteiro. E, como numa premonição, antecipa: “Há no país uma legenda,/ que ladrão se mata com tiro”. O leiteiro na sua pressa de distribuir “leite bom para gente ruim” não tem tempo de compreender sua situação, “ignaro”. Ele nada sabe de si, pouco se sabe dele, de onde ele é, que nome tem. O personagem sequer fala. Há a voz do narrador, a voz do assassino e uma terceira voz, mas o leiteiro apenas cumpre com sua obrigação. Ele é apenas um corpo, como se nota nos versos “E já que tem pressa, o corpo / vai deixando à beira das casas”. No entanto, essa tarefa é cumprida maquinalmente. A sua função é entregar o leite de forma mais rápida possível. E ele o faz. O moço leiteiro é apenas uma peça da engrenagem social.

O enunciador do texto toma de empréstimo vozes que defendem a conformação social. Segundo essas vozes, o leiteiro deve agir sem incomodar a ordem social. Não deve fazer barulho. “que barulho nada resolve”, isto é, nenhuma luta de classe pode existir contra o sistema vigente.

O engajamento social de Drummond se dá por meio da palavra. O verso “que barulho nada resolve” estabelece semelhança com um outro poema “A flor e a náusea”. Nele, também do livro A Rosa do Povo, o sujeito lírico denuncia a realidade opressora ao mostrar que uma flor furou o asfalto e nasceu na rua, furando também o tédio, o nojo e o ódio. Como se vê, a batalha por meio da palavra deixa a sua marca, já que desestabiliza a ordem social de alguma forma.

Ao terminar o poema, o poeta reveste os versos com um lirismo que, para o momento, parece ser descabido, visto que houve um assassinato. Há uma dramaticidade na tragédia narrada.  Por outro lado, o mundo das imagens revela a nuance de uma poesia dotada da liberdade linguística das temáticas cotidianas e plasticidade de palavras como também de subjetividade. A concisão, a fluidez, o efeito estético dominam os versos finais. O leitor é incitado a brincar com as palavras e com a visão perplexa da cena: no vermelho do sangue o branco do leite. O branco do leite no vermelho do sangue. Mistura. Enamoramento. Fusão. Surge nova tela, novos tons, novas cores. O enunciador deixa as palavras mostrarem que a união entre os tons, ou seja, o conflito entre vida e morte se dá “suavemente”, “amorosamente”. 

É preciso que haja nova ordem das coisas. “Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, inferida do arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de  sentido. (CANDIDO, 2004, p.178). Isso acontece em “Morte do leiteiro”. O caos é superado com a aurora.

No entanto, tendo em vista os outros elementos constitutivos da estrofe e de todo o poema, lemos o verbo “chamamos” no presente, o que implica dizer que tudo continuará como estava, quando surge a aurora, metáfora do nascimento de um novo dia, da renovação da esperança. Há, nos versos finais, uma gradação e também um paralelismo “duas cores se procuram/ suavemente se tocam/ amorosamente se enlaçam”.

É um poema que envolve a temática do engajamento político e social. A percepção dos alunos dá-se quando leem os versos: “que alguém acordou cedinho / e veio do último subúrbio”. A reação dos alunos nessa leitura é a de dizer que o pobre está sempre servindo o rico e que o pobre do subúrbio sempre “leva a pior”. Ante as descobertas linguísticas e de conteúdo do texto,  o poema explora a temática do medo da violência das cidades, mas  fica clara a questão da luta entre as classes sociais. Quanto ao caráter lírico/narrativo, por ser uma história contada em versos, o entendimento é facilitado. Quanto a poeticidade dos versos finais, percebe-se a plasticidade: “É como se fosse uma janela aberta e alguém vendo a cena do lado de dentro bem de manhazinha, com o dia nascendo e... não sei explicar, mas parece um artista pintando um quadro” (A.S.L.L.), como disse uma aluna de Ensino Médio.

Além do que é analisado em “Morte do leiteiro”, é  possível fazer comparações com o poema de Manuel Bandeira “Poema tirado de uma notícia de jornal”, porque o primeiro aspecto que salta aos olhos na leitura é a similaridade entre a identificação dos personagens. Tanto o leiteiro quanto João Gostoso se apresentam como trabalhadores que nada valem, colaboradores de uma sociedade hipócrita e descomprometida com homens solitários e sem esperança. Ambos fazem seus trabalhos e não são reconhecidos pela sociedade. Ser leiteiro e carregador de feira livre não são profissões distintas e nem mesmo confortáveis, haja vista que exige esforço físico, despertar cedo para trabalhar e, principalmente, não poder almejar uma ascensão profissional. A aproximação  entre os textos de Drummond e de Bandeira permite que a professor mediador esclareça que, como os dois poetas viveram mais ou menos na mesma época, a poesia deles revela as tendências do período. Cenas do cotidiano e denúncia social são, portanto, tendências do período literário chamado Modernismo.

Veja-se que se pode partir do texto para se chegar ao período literário e não o contrário, já que a proposta não é dar aula de historiografia da literatura e sim de leitura, de desenvolvimento das habilidades leitoras dos alunos.